quinta-feira, 9 de julho de 2009

Fernanda Fontenele

"Acreditar é um verbo que está literalmente tatuado em mim"

A longa caminhada de Fernanda

A história da linda adolescente que não jogou a toalha após ficar tetraplégica num acidente de carro. Fez fisioterapia, recuperou parte dos movimentos, formou-se e sonha voltar a andar com tratamento nos EUA

Marcelo Abreu

Cadu Gomes/CB/D.A. Press/Reprodução


Arquivo Pessoal


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Cadu Gomes/CB/D.A. Press


Cadu Gomes/CB/D.A. Press
Na adolescência, desfile como modelo. Foi eleita duas vezes a mais bonita da escola. Depois do acidente, cirurgias delicadas e tratamento intenso, no Sarah Kubitschek, sempre com apoio da mãe. Hoje, sorriso aberto
Faltavam poucos dias para o aniversário de 17 anos. Era outubro de 2003. Aproximava-se o fim do último ano do ensino médio. E o vestibular também chegava. A cabeça da menina estava a mil. O namoro com um rapaz de 19 anos ia de vento em popa. Tudo era normal. Em casa, com os pais e os dois irmãos mais velhos, a caçula se sentia protegida. Nada lhe faltava. Nem elogios. Estava acostumada a ganhar. A ser tietada, aplaudida, cortejada. Os meninos da escola eram apaixonados por ela. Em dois concursos de beleza foi eleita, consecutivamente, a aluna mais bonita. Chamaram-na de miss. Os olhos verdes, de tão verdes, viraram o seu cartão-postal. Tudo, definitivamente tudo, era felicidade. A vida sorria todos os dias para a menina bonita. E não havia por que não sorrir.

Sábado, 25 de outubro. Aniversário do irmão da menina mais bonita da escola. Eles resolveram comemorar na chácara da família, na região da Fercal, no Lago Oeste. Havia mais de 50 pessoas. Todos muito jovens. Festa regada a cerveja, música e animação. Os pais liberaram a chácara, mas não estavam lá. Fernanda Fontenele, a protagonista desta história, foi com o namorado, um rapaz de 19 anos. Ele dirigia. Durante o dia inteiro, a festa rolou como toda festa de adolescentes. Cerveja em lata não faltou. Alegria. O namorado, o condutor do carro, bebeu. Fernanda, a menina bonita, também. Fim de festa, 19h. Volta pra casa. Estrada escura. O namorado da menina perdeu o controle da direção. O carro desgovernou-se. Bateu em outro que vinha em direção oposta. Rodopiou várias vezes na pista. A batida, de extrema violência, foi toda do lado da menina bonita, que quase foi degolada pelo cinto de segurança.

O namorado bateu a cabeça. Os passageiros do outro carro sofreram luxações. A menina, consciente, foi levada ao Hospital Regional de Sobradinho. Com informações desencontradas, os pais da menina correram pra lá. Fernanda foi submetida a um exame de raios X. Não sentiu mais braços e pernas. Um médico chamou os pais e lhes disse: “Aparentemente, não quebrou nada, mas recomendo tirá-la daqui com urgência e fazer exames mais detalhados”.

A menina, dependente dos pais no plano de saúde, foi levada ao Hospital Santa Luzia. E lá, numa ressonância magnética, a revelação do porquê de Fernanda não mexer mais nada além do pescoço. Ela teve uma lesão medular, na altura da C6 e C7 cervical. Estava tetraplégica. Os pais, naquela mesma noite, souberam da gravidade do estado de saúde da filha. A mãe chorou escondida. O pai também. No dia seguinte, domingo, Fernanda foi operada pelo médico Márcio Vinhal. Havia o risco, se demorasse a fazer a cirurgia, de ela não conseguir mais respirar. A segunda cirurgia ocorreu três dias depois, na quarta. “Tenho uma verdadeira lataria na minha coluna. Tive que colocar quatro pinos para segurar as vértebras estraçalhadas”, brinca a moça, cinco anos depois.

Imobilizada, em cima de uma cama, nove dias após o acidente, a menina completou 17 anos. Cantaram-lhe parabéns no hospital. Tentaram animá-la. Duas semanas depois, Fernanda conseguiu uma vaga no Hospital Sarah do Aparelho Locomotor, na Asa Sul. Lá, contaram-lhe o que era uma lesão medular. “Foi quando a ficha caiu. Até então, pensei que em poucos dias eu estaria andando novamente, que logo ficaria boa”, lembra.

Tratamento
No Sarah, começaram as sessões de fisioterapia. “Sentia muita dor. Para amenizar, tive que fazer infiltração com soro e xilocaína, diretamente na coluna. Foram cem aplicações.” Fernanda conheceu outras pessoas como ela. Soube de suas histórias. Passou a compreender o que era limitação. Aos 17 anos, em meio a lágrimas, intuiu que dependeria apenas dela decidir como conviver com isso. Seguiu rigorosamente o tratamento. “O Sarah foi fundamental pra eu compreender todo o processo da minha lesão medular”, constata a moça.

Do Sarah da Asa Sul, Fernanda foi transferida para a unidade do Lago Norte. A dependência da mãe, que se aposentou para cuidar da filha, era total. Banho, alimentação e necessidades muito íntimas. “Um dia, senti um peso na perna. Dois meses depois, meus braços deram sinais de que queriam se movimentar. Em três meses, comecei a sentar, numa cadeira especial, protegida por cinto de segurança.” E cinco meses se passaram. O apartamento da família, na Quadra 103 do Sudoeste, teve que ser readaptado. Paredes foram quebradas para que a cadeira de rodas circulasse livremente. Uma equipe do hospital vistoriou a casa, para ver se podia receber Fernanda.

Em 2004, o médico que a operou no Santa Luzia, impressionado com a evolução do quadro, lhe perguntou: “Vamos fazer uma faculdade?” Ele instigou a menina bonita para que voltasse à vida. E lhe disse, com sinceridade: “Não sabemos quanto tempo você vai ficar numa cadeira de rodas”. Fernanda entendeu. E retomou a vida. Prestou vestibular para jornalismo, no Iesb. Foi aprovada. Durante quatro anos, a mãe deixou e buscou a filha na faculdade. Na cadeira de rodas, a menina se formou. Virou jornalista.

Enquanto estudava, a família se desdobrou para pagar as caras aulas de equoterapia (fisioterapia montada em cavalo, para fortalecer o equilíbrio e tônus muscular). Para se ter uma ideia, 40 minutos de aula custavam, à época, R$ 200. Aos poucos, Fernanda ganhava autonomia. Hoje, mexe braços e tem perfeito controle do tronco. Tem sensibilidade no pé. Faltam-lhe apenas os movimentos das pernas. “Se consegui mexer os braços, por que não as pernas? A informação passa”, deduz a moça, hoje com 22 anos.

Estados Unidos
Cinco anos se passaram desde aquele outubro de 2003. Fernanda descobriu que, em San Diego, nos Estados Unidos, há um tratamento, desenvolvido por um fisioterapeuta daquele país, que se baseia na repetição dos movimentos e no otimismo. Chamam-no Project Walk. “Os exercícios são feitos em aparelhos que ainda não chegaram ao Brasil, baseados no método de pilates”, ela explica.

Fernanda começou a pesquisar quanto seria o custo e chegou à seguinte cifra: US$ 55 mil (cerca de R$ 112 mil). É o valor de um tratamento para seis meses. Isso inclui a despesa com o centro de fisioterapia, alimentação e hospedagem. Dela e da mãe.

Luiza Guedes, 23 — amiga, uma das que permaneceram depois do acidente (muitas se afastaram, outros chegaram (principalmente no Sarah) e o namoro acabou) — decidiu contar a comovente história e luta de Fernanda, num vídeo de pouco mais de quatro minutos. Colocou-o no Youtube. Em cinco dias, já teve mais de 6 mil acessos. No filme, a moça que não anda pede ajuda para chegar aos Estados Unidos. “Nada me garante que vou voltar andando, correndo, mas eu preciso tentar”, disse ela ao Correio, na sala de sua casa, ao lado da incansável mãe Maria Aparecida Fontenele, 56.

Numa reflexão dessas que vêm com o sofrimento, e quase sempre acompanhada de uma reviravolta na vida, Fernanda admite: “Não seria a mesma se não tivesse passado por isso. Deus é justo. Ele não quis isso pra mim, mas tive que passar pra entender o sentido da vida”. Hoje, no Sarah, a moça que estaria condenada à tetraplegia dá força aos novos amigos. Incentiva-os. Num desabafo que silenciou a sala de sua casa, ela confessou, no fim da manhã de ontem: “Tive que ‘morrer’ pra entender que preciso ser melhor pra mim, pros outros e pra Deus”.

Maria Aparecida, a mãe, ouve a filha falar. Contém a emoção pela milésima vez, para não chorar diante dela: “Nunca me revoltei. Nos momentos mais difíceis, só agradecia porque ela tava viva. Ela é uma guerreira. Virou outra pessoa”. Otimista, a moça de lindos olhos verdes, 1,77m e 57kg, faz planos, para quando voltar da viagem: “Vou tirar minha carteira de motorista e estudar para um bom concurso. Sou formada, posso lutar”. Enquanto isso, Fernanda empurra sua cadeira de rodas. Arranca força de onde ninguém imagina. E sorri um sorriso tão encantador que tudo mais ali vira apenas detalhe.

Solidariedade
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