sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Outro Blogueiro..... Por uma boa causa

SIMPLESMENTE O POST DO ANO PASSSADO NO BLOG QUE EU MAIS LEIO, ALIAS.... TODO MUNDO DEVERIA SE DIVERTIR.... http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/marceunalapa/ http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/frontdorio/
Enviado por Marceu Vieira - 18.12.2008 13h25m causa própria
A fotografia de um transformista fantasiado de baiana na Banda de Ipanema, estampada numa primeira página de jornal velho encontrado em casa, me fez lembrar de Zoraia, a única primeira-passista travesti que conheci na vida. Aliás, deve ter sido a única primeira-passista travesti em toda a história do carnaval.
Apesar de sua existência inusitada - porque o título de primeira-passista de uma escola, num tempo em que ainda havia primeiras-passistas, era deferência concedida apenas à mais desejada das cabrochas -, bom, apesar disso, é pouco provável que os estudiosos do samba, desde sua origem na Praça Onze, saibam da existência de Zoraia.
Escrevia-se Zoraia assim mesmo, com “Z” de Zorro, nome de guerra de uma criatura tão diferente para os meus olhos de menino em Morro Agudo que, no início, eu não conseguia adivinhar se ela era homem ou mulher. Era muito alta, devia medir quase 1,90m. Tinha a voz meio grossa, meio fina, peitinhos de limão e olhava para a gente com olhos de lascívia.
Zoraia reinou no carnaval de Morro Agudo na década 70. Era da linhagem de um Madame Satã, por exemplo, o homossexual que dominou a Lapa carioca dos anos 40 e 50. Como Satã, Zoraia era valente e não costumava perder as brigas em que se metia.
Pobre, nascida na Baixada Fluminense, anti-heroína de uma vida distante dos colégios e próxima dos conflitos com a polícia, era a minoria em forma de gente. Seu tipo se enquadrava em todos os guetos. Era negra, favelada e nem mulher era.
Era uma ferrada. Mas, antes de ter sua carreira interrompida pelas dores de uma condenação na Justiça por um crime que eu nunca soube qual foi, defendeu, anos a fio, com orgulho de rainha de bateria, a bandeira de sua escola de samba. Com sua magreza brejeira e talhada em curvas artificiais, saía, deslumbrante, à frente do vistoso pendão verde e branco do querido Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperial de Morro Agudo.
Na infância, uma das nossas brincadeiras preferidas era mexer com Zoraia. Num tempo em que o homossexualismo era para nós algo insondável, eu e meus amigos de rua descobrimos, enfim, graças a ela, que a humanidade não era dividida apenas entre homens e mulheres. Havia também os viados, que é como a gente a chamava - “ô viadôôôôôô!” - na farra incorreta da meninada que vivia caçoando dos outros na rua.
Zoraia não deixava barato. Corria atrás da gente e, quando pegava um, não economizava cascudos. Se não conseguia nos alcançar, berrava palavrões e, de longe, mostrava o membro, balançando a peça de tamanho razoável que emprestava a seu aspecto já confuso um ar conflitante de aberração e deformidade. Alguns palavrões que gritava eram desconhecidos, o que nos obrigava a pedir a tradução dos garotos mais velhos.
Lembro que um desses garotos mais velhos, certa vez, gritou para ela:
_ Zoraaaaaaaiiiiaaaaaaa! Tua periquita é na buuuuuuundaaaa!!!*
Engraçado que, naquele dia, ela não se ofendeu. Parou, olhou para a criançada que se acabava de rir na esquina, e, em vez de estrilar, como sempre, devolveu com o nariz empinado e um sorriso orgulhoso:
_ Até que enfim vocês disseram alguma coisa que presta. Dessa eu gostei.
Zoraia era a alegria dos peões de obra, dos degredados do sexo, dos viúvos solitários, dos solteirões tarados, dos aleijados, dos desterrados da sorte, dos loucos de rua e dos desvalidos que se saciavam com seus favores. Com alguns, ia de graça. Com outros, deitava-se em troca de notas miúdas, cigarros, bebida ou prendas ordinárias, como perfumes e bijuterias roubados das penteadeiras de casa. Era a encarnação sem glamour da Geni da ópera de Chico Buarque.
Dizem que também consolava mulheres enfastiadas de seus maridos - e que, neste papel, teria chegado a roubar o coração de muitas senhorinhas carentes de gozo e de afeto.
Lembro que tinha uma irmã linda e cobiçada. Contam que muitos homens iam com Zoraia só para amainar, com fantasias, a obsessão de possuir a verdadeira vênus da família. Ter Zoraia na condição de cunhada era uma possibilidade que o preconceito disseminado impedia, mas era o sonho que povoava o fundo da alma de muitos em Morro Agudo.
Talvez só não tenha sido o meu por uma questão de contemporaneidade. Eu era bem mais novo. Mas ouço dizer de homens que sofreram de se embebedar nos botequins com o coração afogado na tristeza de não desfrutar das virtudes femininas da irmã de Zoraia.
A mãe também não era de se jogar fora. Lembro que, certa vez, adolescente, entrei tarde da noite no Botequim do Dimas, Deus os tenha - o Dimas, que já morreu, e seu botequim, que virou armarinho -, e encontrei meu tio sentado no balcão. Perto dele, dois banquinhos adiante, estavam a irmã e a mãe de Zoraia. A irmã já não era aquela visão de mulata da minha infância, mas ainda atraía todos os olhares masculinos do bar.
Aliás, não atraía todos. Dividia alguns com a mãe, ali uma senhora ainda muito bem apanhada e capaz de mexer com a libido de homens até mais novos.
Um dia, Zoraia foi presa e eu nunca mais soube dela. Sua mãe e sua irmã, com os anos, também sumiram, e, desde então, a figura daquela passista extravagantemente andrógina e improvável, de cabelo carapinha escondido sob lenço colorido ou peruca, passou a ser tema de conversas sobre as brincadeiras de mau gosto que aprontávamos na infância.
Anos atrás, cheguei a pensar em me valer da prerrogativa de jornalista para tentar descobrir seu destino. Mas logo desisti. Como não sabia seu nome verdadeiro, não ia dar muito certo telefonar para a assessoria de imprensa do Departamento do Sistema Penal e perguntar por um interno chamado Zoraia, que nem fama no crime tinha.
Lembro que, na cobertura de uma rebelião no presídio de Água Santa, ali pela segunda metade dos anos 80, cheguei a imaginar que podia encontrá-la. A cena: eu de bloco e caneta na mão, anotando as queixas dos presos, e no meio deles lá estaria a antiga estrela dos desfiles da Imperial, feliz com a troça de um colega de cela, que gritaria para os repórteres:
_ Eeeeiii! Essa aqui é a Zoraia, que tem a periquita na buuundaaa!*
Que nada. Zoraia não estava lá. Há pouco tempo, contei a um amigo querido de Morro Agudo da intenção de escrever sobre ela e pedi que me ajudasse a descobrir seu paradeiro. Ou pelo menos se ainda era viva.
Depois de alguma pesquisa, meu amigo descobriu que a personagem da nossa infância cumprira pena de 12 anos e havia deixado a cadeia em data imprecisa, um tempo atrás. Tornara-se evangélica, passara a freqüentar uma Assembléia de Deus e, antes de morrer, doente de mal desconhecido, envelhecido e mofino, reassumira o nome de batismo - Wilson.
Quem sabe na esperança de alcançar o céu, e com ele a remissão dos pecados de antigamente, e talvez ainda a ressurreição da carne castigada e a vida eterna, amém, Wilson da Silva foi enterrado, como fiquei sabendo, já sem as curvas artificiais que nos intrigavam na infância.
* Texto do dono do Botequim extraído do livro "Jornalistas que valem mais de 50 contos", coletânea publicada em 2006 pela Casa Jorge Editorial (o autor optou aqui por substituir expressões contidas no original).

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